Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Morte. Mostrar todas as postagens

domingo, 4 de setembro de 2011

O Poder de Decisão sobre a própria morte


Fonte: New York Times - Paula Span

Armond e Dorothy Rudolph temiam um declínio lento e um sofrimento prolongado em sua terceira idade, o que fez com que se juntassem a uma organização que apoia o direito de terminar a vida quando a doença ou dor ficam grandes demais. Eles participaram de reuniões e rascunharam uma declaração antecipada de vontade rejeitando tratamento de suporte à vida no caso de enfermidades fatais e irreversíveis. Eles deram folhetos sobre o tema aos filhos e discutiram os planos com eles.

Porém, anos mais tarde, quando o casal finalmente decidiu desistir desta vida, tudo veio abaixo. Depois que os Rudolphs começaram a recusar a alimentação, o lar para terceira idade onde moravam em Albuquerque, Novo México, tentou despejá-los. Quando a família recusou, os gerentes ligaram para a emergência e tentaram transportar o casal idoso para um hospital.

Os Rudolphs deixaram o local e morreram numa casa alugada, cercados pelos filhos e cuidados por profissionais especializados em pacientes terminais.

Agora, seu caso se tornou um ponto de convergência para quem apoia a autodeterminação no fim da vida e levantou questões espinhosas sobre os direitos dos residentes em lares para a terceira idade e o profundo desconforto da sociedade com a aceleração da morte.

“O maior medo deles era terminar numa clínica de repouso”, disse o filho do casal, Neil Rudolph, professor de química aposentado de Alamosa, Colorado.

“Aquilo era o inferno para eles, ter pessoas tomando conta deles, não ter independência”.

Da forma como aconteceu, os Rudolphs tiveram uma longa e satisfatória terceira idade em Albuquerque. Eles faziam jardinagem, foram voluntários dos escoteiros e trabalharam como líderes numa igreja presbiteriana. Quando sua casa grande e ajardinada ficou difícil demais para manter, construíram uma menor numa cidade vizinha.

Por fim, eles se mudaram novamente para uma comunidade de aposentados, mas, segundo o filho, “física e mentalmente, eles começaram a descer ladeira abaixo”.

Em outubro, eles entraram num lar para terceira idade chamado Village at Alameda. Armond Rudolph, 92 anos, sofria de estenose espinhal e Dorothy Rudolph, 90 anos, praticamente não se mexia. Ambos apresentavam sintomas de demência precoce.

Em janeiro, eles puseram em ação o plano de parar de comer e beber. A prática é uma forma legal de acelerar a morte sem drogas nem violência, geralmente durando cerca de duas semanas.
Ninguém sabe quantas pessoas escolhem dar fim à vida desta forma, mas uma pesquisa com enfermeiros especializados em pacientes terminais, publicado em The New England Journal of Medicine, em 2003, constatou que a maioria dos enfermos que deliberadamente recusavam comida e líquidos tiveram “uma boa morte”, com baixos níveis de dor e sofrimento.

Neil Rudolph, sua irmã e cônjuges vieram do Colorado para ficar com o casal e chamaram uma organização de cuidados paliativos. “Todos nós discutimos o que isso significava e se eles tinham certeza do que faziam”. Quando os pais confirmaram o desejo, ele os ajudou a escrever uma declaração afirmando sua decisão e depois avisaram os administradores do lar para terceira idade sobre os planos. Segundo o filho, os administradores disseram à família que os Rudolphs teriam de sair no dia seguinte.

A direção do lar não quis dar entrevistas, mas afirmou por e-mail que, quando um residente “exige disposições alternativas, atenção médica ou um nível de cuidado além das nossas capacidades, temos a obrigação de notificar um provedor médico”.

A Fundamental Long Term Care, empresa proprietária do lar e de mais de cem outros em 14 estados, não respondeu aos pedidos de entrevista.

“Esta é a primeira vez que ouvimos falar de uma situação semelhante”, disse por e-mail Karl Polzer, diretor de políticas do National Center for Assisted Living. “É importante que as comunidades para terceira idade tenham o direito de escolher se esse tipo de ação é condizente com sua filosofia e valores”.

Neil Rudolph reclamou aos administradores do Village at Alameda que seus pais, no quarto dia do processo, não tinham aonde ir. Ele também salientou que o contrato exigia um aviso de alta com 30 dias de antecedência.

No dia seguinte, os administradores chamaram o serviço de emergência, relataram uma tentativa de suicídio e disseram para os paramédicos levarem os Rudolphs a um hospital. Chegaram equipes do corpo de bombeiros de Albuquerque e do serviço de ambulância local. Sem saber o que fazer, eles ligaram para um médico do departamento de medicina emergencial da Universidade do Novo México, parte de um consórcio que consultam quando encontram uma situação fora do padrão. Sua confusão ilustra a ambiguidade cercando o ato de parar voluntariamente de comer e beber.

Sob a lei federal americana, essa atitude é legal em todos os estados, afirma Charles Sabatino, diretor da comissão sobre lei e envelhecimento da Associação Americana de Advogados. “A Suprema Corte reconheceu o direito de que uma pessoa capacitada recuse qualquer intervenção médica, incluindo via tubo de alimentação”.

O direito também foi estabelecido pela Lei Federal de Autodeterminação do Paciente. Nem um diagnóstico de demência significa necessariamente que alguém não tenha capacidade legal para decidir parar de comer e beber, asseguram especialistas jurídicos.

Porém, exercer tal direito pode ser difícil. “Embora a teoria possa ser clara, a execução pode ser complicada”, disse Sabatino. Um lar com afiliação religiosa pode recusar, os trabalhadores podem não ficar à vontade e tribunais ou agentes da lei podem querer se envolver.

O médico enviado pela Universidade do Novo México, Dr. Drew Harrell, falou com todos os envolvidos, incluindo discussões demoradas e em separado com Dorothy e Armond Rudolph.

“Eles foram capazes de explicar de forma muito apropriada e eloquente seus desejos. Eles não achavam que precisavam ir para um hospital. O casal detalhou que queria controlar os assuntos ligados ao fim de suas vidas”, declarou.

Tranquilizado de que compreendiam as implicações da decisão, “determinei que nossos serviços não eram necessários”. Os Rudolphs assinaram papéis mostrando que declinaram o transporte.


Preocupados com mais conflitos, os parentes transferiram o casal para uma casa alugada em Albuquerque. Mesmo com visitas diárias, ou duas vezes ao dia, de enfermeiros especializados em tratamento paliativo, a vigília 24 horas era exaustiva, “mas satisfatória”, disse Neil Rudolph. “Era isso que eles queriam e pudemos ajudá-los a executar seus planos”.

Depois de ficar inconsciente, Armond Rudolph morreu primeiro, dez dias depois de dar início ao processo; sua esposa o acompanhou no dia seguinte.

“Eles tiveram a morte digna e pacífica que buscavam”, Neil Rudolph declarou recentemente a jornalistas. “Contudo, isso também é uma fábula moral”.

O grupo Compassion & Choices, que defende a expansão de opções para o fim da vida, fez circular um apêndice que pode ser anexado aos contratos dos lares para terceira idade. Ele afirma, em parte, que “o lar respeitará as escolhas para o fim da vida do residente e não impedirá nenhum tipo de tratamento ou não-tratamento, livre e racionalmente escolhido pelo residente”.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sobre a morte e o morrer - Rubem Alves

O que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de
um ser humano? O que e quem a define?

Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: "Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver." A vida é tão boa! Não quero ir embora...

Eram 6h. Minha filha me acordou. Ela tinha três anos. Fez-me então a pergunta que eu nunca imaginara: "Papai, quando você morrer, você vai sentir saudades?". Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio em meu socorro: "Não chore, que eu vou te abraçar..." Ela, menina de três anos, sabia que a morte é onde mora a saudade.

Cecília Meireles sentia algo parecido: "E eu fico a imaginar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega... O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas, nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias... Com que tristeza o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isto...”

Da. Clara era uma velhinha de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa, sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente, ela fez um gesto, interrompendo a leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas, que pena! A vida é tão boa...”

Mas tenho muito medo do morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos e tubos enfiados no meu corpo, contra a minha vontade, sem que eu nada possa fazer, porque já não sou mais dono de mim mesmo; solidão, ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte, medo de que a passagem seja demorada. Bom seria se, depois de anunciada, ela acontecesse de forma mansa e sem dores, longe dos hospitais, em meio às pessoas que se ama, em meio a visões de beleza.

Mas a medicina não entende. Um amigo contou-me dos últimos dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Era-lhe insuportável a visão do sofrimento do pai. Dirigiu-se, então, ao médico: "O senhor não poderia aumentar a dose dos analgésicos, para que meu pai não sofra?". O médico olhou-o com olhar severo e disse: "O senhor está sugerindo que eu pratique a eutanásia?".

Há dores que fazem sentido, como as dores do parto: uma vida nova está nascendo. Mas há dores que não fazem sentido nenhum. Seu velho pai morreu sofrendo uma dor inútil. Qual foi o ganho humano? Que eu saiba, apenas a consciência apaziguada do médico, que dormiu em paz por haver feito aquilo que o costume mandava; costume a que freqüentemente se dá o nome de ética.

Um outro velhinho querido, 92 anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama -de repente um acontecimento feliz! O coração parou. Ah, com certeza fora o seu anjo da guarda, que assim punha um fim à sua miséria! Mas o médico, movido pelos automatismos costumeiros, apressou-se a cumprir seu dever: debruçou-se sobre o velhinho e o fez respirar de novo. Sofreu inutilmente por mais dois dias antes de tocar de novo o acorde final.

Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a vida continue. Eu também, da minha forma, luto pela vida. A literatura tem o poder de ressuscitar os mortos. Aprendi com Albert Schweitzer que a "reverência pela vida" é o supremo princípio ético do amor. Mas o que é vida? Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? O coração que continua a bater num corpo aparentemente morto? Ou serão os ziguezagues nos vídeos dos monitores, que indicam a presença de ondas cerebrais?

Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas de coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia.

Muitos dos chamados "recursos heróicos" para manter vivo um paciente são, do meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela vida". Porque, se os médicos dessem ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, eles a ouviriam dizer: "Liberta-me".

Comovi-me com o drama do jovem francês Vincent Humbert, de 22 anos, há três anos cego, surdo, mudo, tetraplégico, vítima de um acidente automobilístico. Comunicava-se por meio do único dedo que podia movimentar. E foi assim que escreveu um livro em que dizia: "Morri em 24 de setembro de 2000. Desde aquele dia, eu não vivo. Fazem-me viver. Para quem, para que, eu não sei...". Implorava que lhe dessem o direito de morrer. Como as autoridades, movidas pelo costume e pelas leis, se recusassem, sua mãe realizou seu desejo. A morte o libertou do sofrimento.

Dizem as escrituras sagradas: "Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer". A morte e a vida não são contrárias. São irmãs. A "reverência pela vida" exige que sejamos sábios para permitir que a morte chegue quando a vida deseja ir. Cheguei a sugerir uma nova especialidade médica, simétrica à obstetrícia: a "morienterapia", o cuidado com os que estão morrendo. A missão da morienterapia seria cuidar da vida que se prepara para partir. Cuidar para que ela seja mansa, sem dores e cercada de amigos, longe de UTIs. Já encontrei a padroeira para essa nova especialidade: a "Pietà" de Michelangelo, com o Cristo morto nos seus braços. Nos braços daquela mãe o morrer deixa de causar medo.

Caderno “Sinapse”; Folha de São Paulo 12/10/03. fls 3.