Fonte: Folha de S. Paulo - Cláudia Collucci (21/02/2011)
O Conselho Federal de Medicina prepara uma resolução autorizando os médicos a não reanimar pacientes incuráveis e em estado terminal que sofram uma parada cardiorrespiratória. A ONR (Ordem de Não Reanimar) deve constar no prontuário do paciente e precisa do aval do doente ou da sua família. Nos EUA, a mesma orientação é chamada de DNR (Do Not Resuscitate). A expectativa é que a resolução seja votada em breve.
"Há muitos pacientes terminais nas UTIs e nas enfermarias dos hospitais. Se sofrem uma parada cardiorrespiratória, não têm indicação de ser reanimados. Mas, como isso não está escrito no prontuário, a equipe médica ainda tem receio", diz Roberto D'Ávila, presidente do CFM. A nova resolução é um complemento à ortotanásia - não prolongar a vida de doentes terminais, sem chances de cura. O procedimento tem respaldo na Justiça Federal. Também tramita no Congresso um projeto de lei que regulamentará a prática. Isso já acontece em hospitais onde há equipes de cuidados paliativos.
"Escrever no prontuário o prognóstico do doente, a previsão de morte, os procedimento que devem ou não ser feitos dá mais segurança ao médico e à família", diz Maria Goretti Maciel, médica da equipe de Cuidados Paliativos do Hospital Samaritano. Mas ainda há locais onde a ordem de não-reanimar é velada e conhecida como SPP ("Se parar, parou"). " Isso é pejorativo, uma crença infundada que vai mudar com a nova resolução".
RELATO DE CASO:
Decisão em Família
Durante quatro anos, o jovem Jeferson Felipe Françoso, 23, de Guarulhos (SP), lutou contra uma doença crônica incurável e uma infecção que devastaram os seus pulmões.
Quando ele já estava entubado na UTI, respirando por aparelhos, sua mãe, Lúcia Helena Françoso, com apoio da família, autorizou que os médicos não o reanimassem caso ele sofresse uma parada cardiorrespiratória.
No último dia 4, às 20h48, o coração de Felipe parou. Morreu na presença da mãe e da avó.
Depoimento
Meu filho começou a ficar doente aos 16 anos, logo depois que o pai morreu, de câncer no reto.
Sofria pneumonias seguidas e, aos 19, descobrimos que era fibrose cística [doença genética que pode causar infecção crônica]. Ele também tinha uma bactéria resistente [Mycobacterium abscessus] nos pulmões.
Durante seis meses, o Fê ficou com um cateter por onde recebia os antibióticos para combater a bactéria.
Por causa dos remédios, perdeu a audição. Isso o deixou desanimado com o tratamento. Não tinha melhora dos sintomas e também não podia estudar, jogar bola.
Ele começou a faculdade de administração e um curso de desenho, mas não conseguiu terminá-los. Eram antibióticos, inalações, injeções de enzimas diárias e mesmo assim as crises de tosse e de falta de ar não davam trégua. Ele sentia falta de ar até para tomar banho.
Em agosto de 2010, o Fê começou a piorar. Pesava 44 kg e media 1,80 m. Passava 20 dias no hospital e uma semana em casa.
Foi quando começamos a ser acompanhados pela equipe de cuidados paliativos do Samaritano.
O Fê precisava ganhar peso para entrar na fila do transplante de pulmão. Foi colocada uma sonda no estômago para ele receber suplementos alimentares. Mas ele sabia que não ia sarar, que a doença era incurável.
SEM REMÉDIO
O Fê passou a conversar mais comigo e com a tia [Dulce Machado]. Numa das últimas conversas, ele disse para a tia que não tinha medo da morte porque já não havia mais prazer algum na vida.
Mas eu não deixava o ambiente ficar triste em casa. Ele dizia: "Mãe, como é que você consegue ainda me fazer rir". E eu dizia: "Mãe é assim mesmo. Mãe chora, mãe é palhaça, mãe é boba.'
No Natal passado, eu já pressentia que seria o último do meu filho. Foi uma festa linda. Ele ganhou uma camiseta do São Paulo, que era o time que ele tinha paixão.
Na última internação, em 3 de janeiro, a médica explicou que os antibióticos não faziam mais efeito.
Quando ela saiu do quarto, o Fê disse: "Mãe, não tem remédio para mim mais..." Aí ele chorou muito. Viu que era o ponto final da medicina. Eu peguei na mãozinha dele e disse: "Filho, agora é só Deus. Se ele achar que pode fazer um milagre, vamos confiar".
Eu não chorava perto dele porque ele não gostava. Dizia: "Mãe, se você não ficar forte, o que vai ser de mim?". Eu sofria por dentro, sem demonstrar. Só chorava longe.
No dia 19 de janeiro, comemoramos o aniversário dele no hospital. Vieram os primos, as médicas, as enfermeiras. Ele ficou tão feliz! Comemoramos também o fato dele ter atingido 50,5 kg, que era o peso mínimo para entrar na fila de transplante.
Mas, com o passar dos dias, o desconforto respiratório foi piorando. Ele sentia muita dor, que só era controlada com morfina a cada quatro horas. No dia 26 de janeiro, foi transferido para a UTI semi-intensiva. Já não conseguia mais falar direito.
Ficava com a máscara de oxigênio o tempo todo. Conversando com a irmã, Jéssica, ele voltou a dizer que não tinha medo da morte, que estava em paz. Ele até brincou: "Vou ficar bem, vocês é que vão sofrer um pouquinho".
No dia 27, à tarde, soube que o Fê teria de ser entubado [respirador artificial] porque a máscara de oxigênio já não dava mais conta do desconforto respiratório. Os médicos queriam dar mais uma chance para o organismo reagir, pois a infecção pulmonar estava sem controle.
Foi um choque para mim. Eu sabia que aquele momento iria chegar, mas não esperava que fosse tão rápido. Quando o Fê soube, chorou.
Eu segurei a mão dele e disse: "Filho, não fique com medo. Eu vou ficar bem, a sua irmã vai ficar bem". Ele estava assustado, mas só perguntou se iria continuar dormindo, se não sentiria dor. Aquele olhar assustado foi a nossa despedida.
Em seguida, ele foi sedado. A esperança era que, em 72 horas, a infecção fosse controlada. Mas isso não aconteceu. O antibiótico não fazia mais efeito.
ATÉ O ÚLTIMO MINUTO
Na segunda, dia 31 de janeiro, tomamos uma decisão em família: não reanimá-lo caso o coração dele parasse.
A proposta era dar o conforto necessário para ele não sofrer. A equipe médica iria aumentando a morfina e a sedação. Eu concordei. Vi meu filho sofrer tanto nesses últimos anos que eu não suportava prorrogar mais isso.
Foi de coração que eu entreguei ele para Deus. Fiquei até o último minuto ao lado dele, dizendo: "Filho, estou aqui. Se você quiser partir comigo aqui do teu lado, pode partir. Se você acordar, eu também estarei aqui".
Eu sabia que o Fê tinha uma briguinha com Deus por causa da morte do pai e por causa da sua doença. Na UTI, com ele inconsciente, eu dizia: "Filho, fala para Deus tirar você desse sofrimento". E falava para Deus: "Se for para trazer meu filho de volta, traga ele inteiro. Se não for, eu te dou de presente um anjo".
No dia 4 de fevereiro, ele quase não tinha mais pulsação. Olhei para o monitor, e os batimentos cardíacos estavam em 35 [o normal é de 60 a 100 batimentos por minuto]. Fiquei segurando a mão dele, beijando-o até o coração parar de vez. Doeu muito e ainda dói, mas me sinto com dever cumprido. Agora me sinto em paz.
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